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Cinema brasileiro não pode ser visto como “vira-lata”

Imagem do(a) autor(a) do texto - Por Sérgio Rizzo*/Revista Ensino Superior (convidado)Por  Por Sérgio Rizzo*/Revista Ensino Superior (convidado) 18 de Dezembro de 20254 min para ler

Por Sérgio Rizzo*/Revista Ensino Superior 

O trauma do “Maracanazo” — a perda da Copa do Mundo de 1950, em pleno Maracanã, para o Uruguai, diante de um público estimado em 200 mil pessoas — levou o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980) a criar a expressão “complexo de vira-lata”.

Ele se referia a um sentimento de inferioridade que leva muitos brasileiros a olharem para o que vem de fora como se fosse naturalmente superior ao que temos aqui, como se houvesse uma espécie de determinismo histórico a nos condenar a um lugar periférico na ordem global.

 

No futebol, a conquista da Copa de 1958, na Suécia, graças à geração dourada de Pelé e Garrincha, interrompeu o viés negativista. Outros quatro títulos mundiais vieram e o país tornou-se o único pentacampeão. O “Maracanazo” foi superado.

 

Em diversos campos da economia, o “complexo de vira-lata” também já não faz o menor sentido. Na cultura, a música se encarregou — sobretudo a partir da internacionalização da Bossa Nova, nos anos 1960 — de alimentar a nossa auto-estima; ouvir nossos intérpretes (de variadas épocas e gêneros) no sistema de som de lugares públicos é algo muito comum a quem tem a oportunidade de viajar para o exterior.

 

No cinema, entretanto, razões de ordem econômica e cultural têm conspirado para que o sentimento de inferioridade continue a circular entre nós.

Para compreender esse fenômeno persistente, é indispensável lembrar que filmes estrangeiros — com destaque para os norte-americanos e os franceses — dominaram o período de implantação do circuito cinematográfico no Brasil, nas primeiras décadas do século 20.

 

Empresas estrangeiras controlavam o setor de distribuição e parcela considerável do parque exibidor (as salas). Quando alguns pioneiros do cinema brasileiro, nos anos 1920 e 1930, como Adhemar Gonzaga (1901-1978) e Humberto Mauro (1897-1983), passaram a defender o fortalecimento da produção nacional, muita gente se perguntou: por quê e para quê? Ora bolas, os filmes já nos chegam prontos de fora.

 

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Sim, chegam e continuam a chegar. O setor de distribuição, em plano século 21, continua sob controle de grupos norte-americanos. O parque exibidor, idem.

 

Com o avanço das plataformas de streaming, repetiu-se a mesma concentração de poder — Netflix, Disney, Warner (por meio da HBO Max), Paramount e Prime Vídeo se encarregam de registrar a hegemonia por meio de suas marcas globais.

 

Diversas gerações de brasileiros cresceram acreditandeo que se trata de algo natural, pertencente à ordem suprema do cosmos. Não pertence. “Follow the money” (siga o dinheiro), como gostam de dizer exatamente os norte-americanos: o cinema brasileiro vive, desde as origens, a condição de “vira-lata” em sua própria casa. Sobrou um canto do quintal. Os cães de raça estrangeiros dormem no quarto e na sala. Nós permitimos que eles o façam. Somos muito bonzinhos. E ingênuos.

 

Em paralelo ao domínio econômico, instaurou-se o domínio cultural. Expostos à produção dos EUA (que se consolidou no exterior de maneira especialmente agressiva no pós-II Guerra Mundial), espectadores brasileiros — a exemplo de espectadores de dezenas de outros países — habituaram-se a consumir filmes ambientados em uma realidade social muito distinta da nossa, dedicados a explorar fatos e personagens que atendem a interesses norte-americanos. Fomos adestrados — a palavra soa forte, mas é adequada — a receber de braços abertos tudo o que vem junto com essa produção, como os valores do modelo sociopolítico dos EUA (incluindo hábitos de comportamento e consumo).

 

Se o que pertence a esse universo parece ser “nosso”, cria-se um paradoxo: para muita gente, aquilo que é efetivamente nosso — os nossos filmes, que reverberam os nossos códigos culturais — parece ser alienígena. Distante. Incômodo, até.

 

Conhecer e valorizar o cinema brasileiro reveste-se de importância porque envolve, portanto, duas dimensões complementares: a econômica (que determina quem dá aos cartas no jogo) e a cultural (que possibilita nos reconhecer e nos entender melhor como seres humanos e como cidadãos de uma determinada sociedade).

 

Não custa lembrar que a primeira dimensão envolve geração de empregos e remessa de lucros (Los Angeles nos agradece sempre que pagamos pelo entretenimento de origem norte-americana). E não custa lembrar também que a segunda dimensão, a da formação cultural, é justamente a que permite, entre outras coisas, compreender melhor o funcionamento da primeira. Podemos aprender um monte de coisas com filmes, inclusive o funcionamento do próprio cinema como ponta-de-lança do “soft power”, o poder simbólico que conduz ao poder político.

 

Hoje, o campo do audiovisual emprega no Brasil mais pessoas do que a indústria automobilística, entre diversos outros setores. Se houvesse apenas um bom motivo para lhe dedicar atenção, seria esse. Mas olhemos para outros motivos, estruturantes de nossa identidade.

 

Ver filmes brasileiros nos coloca em contato com diversos elementos de nossa cultura, a começar pela própria língua e suas inúmeras variações regionais; nos aproxima de outras expressões da cultura, como a música, a literatura, as artes visuais e a dança; permite que nos olhemos no espelho e discutamos entre nós o que vemos — nem sempre será algo de que gostamos, bem ao contrário; possibilita conhecer um pouco melhor a nossa história e, como sabemos, quem não a conhece está condenado a repetir seus erros; nos estimula a pensar na sociedade que desejamos construir; e, claro, nos diverte e nos entretém com base em ingredientes que conhecemos muito bem.

 

O momento é altamente favorável à defesa do cinema brasileiro como um pilar essencial de nossa sociedade.

 

Em pouco mais de um ano, os três festivais mais importantes da Europa (Berlim, Cannes e Veneza) e o prêmio mais conhecido do mundo (o Oscar, atribuído pelos integrantes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood) agraciaram filmes brasileiros: “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles com base no livro de memórias de Marcelo Rubens Paiva, e estrelado por Fernanda Torres; “O Último Azul”, dirigido por Gabriel Mascaro e estrelado por Denise Weinberg; e “O Agente Secreto”, escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho, e estrelado por Wagner Moura.

 

Juntos, eles representam um pouco da imensa diversidade do cinema brasileiro, que todo ano realiza centenas de filmes de ficção e documentários, de curta, média e longa-metragem.

 

Diversidade que, no entanto, ainda é pouco conhecida dentro do próprio país — fruto da persistência do “complexo de vira-lata”, bem como das eficientes engrenagens econômicas e culturais que se aproveitam da nossa predisposição para a inferioridade e tentam nos convencer de que o produto estrangeiro é superior. Não se trata, na verdade, de discutir se algo é melhor ou pior do que outro.

 

Como dizia o escritor e professor Paulo Emílio Sales Gomes, que participou dos grupos de intelectuais que criaram a Cinemateca Brasileira e a Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, o cinema brasileiro “nos diz mais” do que estrangeiro. “Dizer mais” significa que conversamos melhor com ele, porque conhecemos melhor o que se passa na tela. E, se conversamos melhor, parece um tanto óbvio que ele também nos faça bem.

 

Nesse contexto, estudar áreas como fotografia, audiovisual e comunicação na universidade torna-se um passo importante para aprofundar esse diálogo com o cinema nacional. O ensino superior oferece repertório técnico, histórico e crítico que amplia o olhar sobre as imagens, ajudando a formar profissionais e espectadores mais conscientes do valor cultural e simbólico do audiovisual brasileiro.

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